terça-feira, 13 de agosto de 2013

A bola da vez

  Sempre tive boas histórias relacionadas a determinadas situações. A viagem para um hotel estranho, a fila do banco, o corredor do supermercado ou um simples filme no cinema. Cada qual com sua particularidade não habitual. Contudo, dessa vez foi especial. Não fui vítima. Apenas observador. Fiquei de fora sem me deixar envolver. Algo inédito para um para-raios.    
  De repente você adentra o ambiente. É bem recepcionado por um funcionário, mas a missão já começa na entrada. Os olhos procuram por números e assentos. Movimentar-se é preciso, senão a fila empaca e um suspiro quente de insatisfação invade brutalmente sua nuca. Uma hora e meia de viagem. Estou dentro de um avião. Bastante cheio. Descubro que meu lugar é o número 28-B. Exatamente aquele perto do banheiro. No fundo. Bem no fundo.
  A cada aproximação de pessoas eu imaginava se seria essa, aquele ou aquela que estaria ao meu lado. Nessa altura eu já me preparava para o pior. Muitos entraram, ajeitavam malas e um entra e sai fora do comum no banheiro. Ao meu lado direito -assento do corredor - acomodou-se um senhor. Cara fechada e de poucos amigos. Logo abriu o jornal e resmungou baixo palavras inaudíveis no estilo Seu Saraiva - Tolerância Zero. Do meu lado esquerdo uma mulher. Esta personagem indiferente e nula para o enredo.
  Passageiros à bordo. Tudo conferido. Permissão para decolar. Naquele momento eu conseguia diferenciar cinco choros alternados de crianças. Desde recém nascidas à mais velhas um pouco. Uma orquestra sinfônica. Tipo os cachorros da rua que decidem uivar juntos durante toda madrugada. Atrás de mim o papo era intenso. Adultério, separação e divisão de bens. "Você tem que arrancar tudo dele Ângela. Eu tô falando tudo mesmo!", aconselhava para a outra amiga que aos prantos não se conformava com tais "galhos".
  Do outro lado do corredor, na reta do "seu Saraiva", um rapaz estava sentado. Nele conheci o verdadeiro significado da palavra "medo de avião". Nunca havia presenciado uma pessoa com tanto pânico e horror ao decolarmos. Literalmente fincado na poltrona ecoava berros graves, pausados e amedrontados. A essa hora o Tolerância Zero já havia amassado o jornal algumas várias vezes. O somatório dos choros, "titi-non-stop" das amigas, os berros de medo e a postura extremamente irritada do senhor ao meu lado me deu uma certeza: Não sou a bola da vez.
  Os gritos já haviam parado. Meia luz. As crianças, aparentemente, dormiam. O silêncio reflexivo das amigas era perceptível. Definitivamente a paz reinava dentro do avião. A meditação só foi quebrada minutos depois quando funcionários apareceram para servir o lanche da tarde. Lentamente serviram as três últimas poltronas e chegaram na nossa fileira. "Coca-Cola ou Água, senhor?", pergunta a ativa aeromoça. "Coca. Apenas Coca", respondeu de forma objetiva Saraiva. Acompanhei todo o processo em câmera lenta. O despejo do líquido preto no recipiente. As mãos semi-molhadas de gelo manuseando a garrafa. Tudo estava em slow motion diante dos meus olhos.  
  A funcionária já olhava para o outro lado a fim de saber o pedido do próximo passageiro. Foi quando toda a Coca-Cola que deveria ser servida virou-se inteira no colo do "seu Saraiva". Juro que ouvi o grito apreensivo da torcida em momento de quase gol num estádio cheio: Uhhhhh! Ele não reagiu. Não olhou para ela, tampouco deferiu qualquer palavra. Ficou mudo. Apenas mudo. Muito sem graça, a moça bolava mil e uma maneiras de lidar com tal situação. Todas sem êxito algum. Foi quando ela teve a infeliz ideia de se pronunciar. "Existe algo mais que eu possa fazer pelo senhor?". Enfurecido ele respondeu: "Tem! Tem sim. Porquê não pega o resto da garrafa, despeja tudo em mim e descobre se não consegue me molhar mais?!".
  "Reclinem suas poltronas para a posição correta. Dentro de instantes pousaremos no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo", avisou o piloto. As luzes se acenderam. Os choros voltaram com toda afinação possível. Os conselhos e o desespero da amiga também. Saraiva naquele momento era o semblante do mau humor. O medo já tomava conta do rapaz ao lado e o ataque de pânico era iminente. Eu estava intacto e isso era quase um milagre. Pela primeira vez vi tanta coisa acontecer ao meu redor e não fui afetado por nenhuma das situações.
  Já na pista esperei a boiada do empurra-empurra sair com malas e apetrechos. Cada um lentamente foi deixando o avião. Cada qual com seu destino. Provavelmente nunca mais verei tais pessoas. Dividimos quase duas horas de nossas vidas e só. Ao final de tudo, não precisei pensar muito para chegar a uma simples moral dessa longa história: "Em dias de forte tempestade procure sempre um para-raios mais potente que você mesmo".        

Um comentário:

Maira disse...

Depois de passar horas nesse blog, lendo textos e ficando encantada com essa simplicidade, irreverência que causam reflexões e puxam para cada vez mais textos. São diversos assuntos que, ao final de um parágrafo, esboçamos um sorriso. Uma conversa, um café ou cerveja e uma boa música devem ser ótimas oportunidades.